terça-feira, 30 de junho de 2009

Monólogos

A vida goza comigo à força toda.
Mas é isso mesmo que a Vida — com maiúscula — faz.

Tem um sentido de humor maravilhoso,
sobretudo porque fomos ensinados a esperar dela seriedade.

Quando lhe dizemos:
“Pá, a sério, o que é que se está aqui a passar?”,
ela responde com um olhar profundo
que só pode significar:

“Foda-se.”

Que Vida esta.

Estava a passar pela esquina, pairando rente ao muro.
Dirigia-me apressadamente em direcção a sítio algum.

Seguia obstinado para o limite do mundo
explorado pela humanidade.

Foda-se.

Andar sozinho é libertador.
Sem sentido.

Olhava directamente para o nada,
vazio de forma e de conteúdo,
esmagado por um interesse avassalador por nada.

O ritual apropriado para começar de novo:
esvaziar-me de tudo.

Como assim?

Caminhava apressadamente rumo a sítio algum,
olhos a desfocar por manter o olhar preso ao chão.

Cada pedra diferente.
Cada pessoa diferente.

Assemelhamo-nos a pedras, pensei,
com notas pequenas de malícia.

Foda-se.

Fui atingido, pouco depois,
por uma claridade difusa.

A claridade difusa desta ideia, pensei, orgulhoso,
pontuará a agrura destes dias.

Algures no meu corpo nascera,
simultânea à claridade,
uma espécie de miúfa.

Um calafrio.

Desfoquei os olhos.

A claridade difusa vinha afinal
dos faróis do veículo que se aproximava.

Já não pairava rente ao muro.

Lembro-me de um último pensamento
a correr o pretérito da inconsciência.

Resumia-se assim:

“Foda-se.”

sexta-feira, 8 de maio de 2009

ao longo dos séculos: transcrito do muro

Dezembro é uma mulher que coloca o braço
no braço do seu homem adormecido.

Adormecida, chega-se mais ao seu corpo.
Ele gosta do seu frio.

Março tem imagens, reflectidas no espelho,
que passam rapidamente,
deixando forte impressão no peito.

Junho é escritor sem ideias.
Só sensações.

Sente-se esquecer, aquecendo-se.

Julho é mulher florescendo,
abrindo os braços para a luz,
com Agostos de amor.

Em Setembro,
uma beleza tão doce como dorida.

O tempo passa.
Todo esse tempo que passa —
até mesmo sem querer —
és tu.

Os restantes meses
são borrões de cor amalgamados,
como a memória que uso de ti.

E exclamou: "Meu Deus!"

Foi então que caiu em si.

Percebeu que estava sozinho e,
como se não bastasse,
completamente embriagado.

Mais preocupado em tentar manobrar os membros
do que em perder a calma,
avançou aos ésses pela rua,
com alma e decididamente.

Mantendo o seu low-profile,
ia gritando, em desafio parvo:

“Ninguém me apanha!”

Caiu de novo em si:
percebeu que já não estava sozinho.

domingo, 29 de março de 2009

Onde fica a esquina?

A esquina-maravilha é um local mítico.

Onde os vagueantes se encontram,
em busca de propósito ou de nada,
em busca de redenção ou de perdição.

A esquina-maravilha fala de corpos sem obsessão,
de olhares sem os realmente querer,
de dias ao abandono das horas.

Aqui partilham-se experiências, alegrias, mágoas
e as sensações de bizarria que só quem vive experimenta.

Tudo isto sobre um cigarro.

A esquina-maravilha é.

As artes são sempre produto e espelho
das conversas desta hora.

Sucessivas e renovadas concepções de arte
resultam de um escarro,
ignorantes de decoro estético
e com medidas novas.

Sem forma poética.

Apenas desaforo.

A chave de ouro
para encerrar uma torpe noite.