quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Sonhos reais

As escadas sobem até tua casa,
situada algures entre a terra de onde parto,
um céu azul e uma vontade escangalhada.

Em ti pousado, finalmente,
abandono por momentos o meu lugar.
Levanto-me, como em passeio casual,
na tua direção.
Sempre nela.

Alguém grita, descontrolado.
A escada não acaba
a partir do momento em que me encontro nela.

Parti da terra, nível zero:
um cinzento povoado de tons,
mais claros ou mais carregados.
Óleo no chão.
Caixa de esmolas na mão.
Sempre pedinte de algo na vida.

Nunca tive nada.
E sempre me tiraram tudo.

Ao subir, cruzo-me com caras cinzentas,
claras ou escuras,
que ignoram o código simples
de responder ao meu sorriso.

Sempre que posso, entre inspirações profundas,
espreito pelas janelas de transição.

Edifícios, sempre mais altos,
sempre mais iguais,
escondem as mesmas caras cinzentas,
treinando sorrisos ao espelho.

A escada continua, caracol, interminável.

Como os sonhos.

Nome de cidade

A minha amiga chama-se Coimbra e tem com isso um trauma: não consegue dizer o seu nome. Nem sequer lá vai por sinónimos. Quando lhe perguntam o nome responde, por isso, "não sei", sem que os outros fiquem à espera de mais nada.

A

Acção, atrito, armadura, Ana, assadura, amor, asco, artigo, artrose, arte, acariciamento, actividade, alimento, aleijar, alguidar, amêndoa, amargura, amizade, armísticio, amplitude, altivez, aforro, agravar, arriscar, atónito, ajoujado, árvore, aríete, ânsia, afogamento, aflição, algoz, afrontamento, abalroar, albernoz, albergue, avidez, avolumar, aplicação, afagar, ambos, abalo, abalar, amortecimento, alternativa, alternadeira, angra, animosidade, animalidade, ânimo, antigo, altivez, atoarda, alindar, abrigar, amplexo, amostra, atracção, arrojamento, aquartelamento, acautelar, acidental, acrescido, ácaro, acizentado, assaz, agrura, altivez, ambivalência, ambulância, atestado, atiradiço, assanhado, abananado, algorritmo, assíndote, anorética, afónica, afogueada, aflora. Foda-se.

A monte na noite

As noites têm as suas fotos,
dados que nos ficam na memória ram ou rum,
algures entre o coração, a cabeça e a alma —
um triângulo das Bermudas de calças,
com pernas, carne e sangue bombeado
por emoções reais
e paranormalidades bocejantes
de seres ausentes das exigências do nada.

E olhos.
Para te ver melhor.

A noite deixa-nos sons sem imagens,
arrepiantes ou ternos,
devastadores ou excitantes.

A noite vale mais do que amar mil imagens.
Quem disser o contrário é parvo.
Ou elevado ao quadrado de parvo.

Há noites de magia,
em que a lua cheia teima em entrar-nos pelos sentidos
sem permissão ou garantias.

Noites em que o destino resolve colocar pessoas
que nos fazem falta no caminho —
um jogo de xadrez de acasos.

Há noites de terror,
de violência bárbara em que os homens não são homens:
apenas emoções desregradas,
raivas ecoantes,
perdidas nos labirintos da solidão.

Há noites estranhas,
noites calmas, frias ou quentes,
noites longas, curtas,
noites que parecem não terminar mais.

Até ser dia,
baila-nos a ideia de que as noites são humanas.

Há noites malucas,
teatrais até mais não.

Noites banais,
noites demais,
noites inesquecíveis —
até não nos lembrarmos mais.

Noites em que a escuridão se torna um manto acolhedor,
noites putas em que somos levados, abalroados,
sulcados pelo imprevisto.

Há noites de outra escuridão.
Há noites de água e pão.
Há noites de sono simples e bom —
porque amanhã trabalha-se cedo,
porque sim ou porque não.

Há noites estranhas que sentimos nas entranhas,
noites calmas misturadas com noites de querer(-te),
outras em que não.

Pelo menos até ser dia.

Fluidez

Quem alguma vez afirmou que isto de viver seria simples
simplesmente enganou-se.

Mas ninguém o disse —
fui sempre eu a acreditar,
simplesmente enganado,
de forma canalha mas, acredito,
com toda a boa fé.

Complicam-se os passos sóbrios a dar.
Há que meditar muito bem neles
e atapetar a visão com os paralelipípedos que suportam o peso dos passos.

Já não nos podemos dar —
dar a luxos,
dar a desperdiçar,
dar em vão,
dar a vazar vogais,
dar a vogar pelo Vouga fora

como se esbanjássemos tempo e tudo.

“Dentro de dias” passou a significar demasiado.
Complicam-se os passos sábios a dar.

Dizem-se palavras tantas e tontas,
tantas delas,
que acabamos simplesmente
por ficar a vê-las passar entre os dedos,
escapatórias inexoráveis do invisível.

Um emaranhado de nadas,
um sentido quase macabro a evitar.

Confusos com a rapidez do mundo,
aproveitamos para abominar
a eficiência rápida e letal para a qual se vive.

Existir é o cálculo renal do tédio.

Mas nem sempre estamos disso conscientes.
Nem sempre é certo que se odeiem coisas específicas:
é mais justo odiarem-se generalidades.

Podemos odiar odiar
e sermos felizes à segunda-feira.

Eu odeio odiar
e desse sentimento retiro os restos da sua força.

Eu odeio odiar inclusivamente quem me disse
(nos disse)
que isto de viver era simples.

Mas odeio muito mais dar razão a isso:
tudo é simples
quando temos a paz de nos sentirmos simples.

Por vezes, porém, precisamos de pinceladas pungentes
de espírito de contradição:
da aceitação da palavra “não”
como parte constituinte do nosso léxico,
um laxante para a ira
ou simplesmente uma rotunda incontornável de obviedades.

“Dentro de dias” passa a anos e anos
quando não se sabe recorrer à palavra “não” na altura certa.

Pode ser, claro, que “dentro de dias”
se desenvolva em escassas horas,
numa questão de minutos.

Isto, claro, quando só se sabe dizer “sim”.

Porque sim.

Enquanto o tempo passa,
que tal pedirmos mais um cafezinho?

Olha.
E porque não?

Fotos nocturnas

As histórias da noite têm sido fotos. As fotos que falo contigo do mundo, de novo as palavras que se dizem, os gritos, os outros. Aquele todo outro pedaço do mundo que se assemelha a uma nós. Qual será o sabor do seu recheio?
Lembro-me das discussões a que assisti, cheio de vontade de intervir, daquelas em que participei, cheio de vontade de partir. Lembro-me de quando tivemos medo juntos, de quando se gostava, quando se sentia, de noite, a electricidade que se encontra no viver. Recordo-me dos amigos a despejarem cerveja em cima dos senhores polícias, sem ingenuidade, num envolvente e maravilhoso uníssono. O trabalho que representam os momentos da vida, o caminho ilusório da facilidade.
Lembro-me dos que nos acompanharam, lembro-me sempre de todos. Lembro-me de quem seguiu em frente contigo.

Olhar fronteiriço

Lapida, delicado, a palavra. Cada uma delas é vida, sede constante de atenção. O mundo, do mundo, ao mundo: o dia sucede-se assim, dolente.
O dia é a fronteira que nos junta e nos desliga. Há pessoas que sabem fixar o tempo, nem que seja por breves instantes, entre palavras cansadas, cantadas, entre gestos que nos fazem continuar. Há pessoas que crêem dominar o tempo. E continuam, assim, a subir a colina.
Lembro-me de quando te vi, a primeira vez de todas. Nessa altura não eras ainda minha e eu era de outra pessoa. Lembro-me que te deste a mim e que eu não dei por nada. Eu, sorrindo, achei uma chachada a isto de se pensar que se pertence a alguém. Não se pertence realmente a nada: apenas a nós mesmos.
Lembro-me de, logo ali, na primeira noite em que te vi, me apetecer estar fechado contigo, fechar-te comigo, encerrar-te em mim, cerrar a minha mão nos teus tão generosos seios. Um escritor disse, extravagentemente, que alguém que comunica para o mundo fala sobre e do mundo do alto da sua torre de isolamento, a partir do seu próprio mundo. O seu mundo fechado. Perante tal seio, não sei o que te diga. Sinto-me constrangido agora, olhando-o para trás. Na altura era mesmo para ti que olhava.
Comparavam sapatos. Eu mergulhava no teu decote. Trocavam risadas e faziam planos para mais tarde. Eu encontrava-me no fim do mundo onde estavas tu alheada. O miradouro, várias colinas, Olissipo, a líbido, o teu Verão e a minha tesão.
Não calhou nunca dizer-te mais nada. Foi rápida a troca de olhares. Foste embora porque os sapatos novos magoavam.
"Mas, com uns pés tão bonitos, porque não andas descalça?", perguntaram-te.
"O soutien não te magoa também?", foi o que me pareceu ouvir.
Nunca fui bom com palavras tolas.

As mamas da boa amiga

Sinto-me devasso,
com confidencialidades
à flor da pele.

Não sei o que se passa
no ser-se humano.

Sei-me insano.

Novo Ano

Pûs-me no autocarro rumo a um novo ano, desconhecido como o são todos. Este ano começará de forma peculiar, penso, com esperanças positivas e surrealismos concretos.
Desejo apenas uma coisa para o ano que entra: um beijo. De forma cinematográfica, erótica ou simplesmente na face. Não quero nada mais que seja independente da vontade minha. Com toda a importância do mundo, comparável ao ombro oferecido à tristeza de alguém.
Ao pensar em todo o caminho percorrido, ao acumular de quilómetros até dado destino, ao pensar em todas as palavras ditas, todos os jogos perdidos e ganhos, todo o caminho percorrido passa a ser, cada vez mais, proporcional aquele que falta ainda percorrer. Ao pensar em tudo isto conclui que tudo se resume ao nada de um beijo, de uma insignificância que enche a alma, como a tristeza, a euforia, o banal, a histeria de uma vitória. Se dissesse, um dia, que tudo isto realmente importa, fá-lo-ia ao final de um dia preenchido, ao deitar.
O banal e a histeria, a gargalhada oca e o silêncio significativo, longe do constrangimento. O teste trivial e o teatro visceral. O jogo, todo ele de palavras. O comando e o obedecer. O anarquismo da ordem e a proeza de não se atingir nada, um novo ano cheio de nada.

Mais um louco

Chegou ao comboio já careca, meia-idade.
Colocou-se imediatamente a meio da carruagem.

Ia fazê-lo pelo Sporting.

Despiu-se quase na totalidade, exceção feita aos calções e às sapatilhas.

Começou por fazer vinte flexões de braços enquanto insultava o Benfica e o Porto.
Vangloriava-se de ter falado com o Sá Pinto
e de ser conhecido em Sintra.

Fez mais umas quantas flexões de pernas,
gabando-se do físico.

Cumprimentava as pessoas
e continuava a insultar os rivais clubísticos.

Percebi depois que se exibia para um conhecido
que vestia um jérsei leonino autografado.
O absurdo da cena atenuou-se um pouco.

Algumas pessoas riam.
A maioria ignorava-o.

O comboio partiu.

O seu rosto estava agora vermelho do esforço e do orgulho.

Chegados a Santos, já vestido —
e sob o atento olhar de dois polícias —
tentou cravar o jornal ao seu conhecido,
que afinal não o era.

Despediu-se de todos os espectadores com um:
“Agora vou à Kapital!”

Estavam 10 graus lá fora.

A carruagem ficou impregnada de suor.

Leonino.

Mais uma viagem

Apanhei o táxi por necessidade. Estava atrasado.

Depois de comprar o jornal, enfiei-me logo no primeiro da fila.
O carro cheirava intensamente a suor.

Disse: “Era para a Rua do Cruzeiro!”.

Respondeu o taxista: “Era, já não é?”.

Típico.

Bem-disposto, foi alegrando a travessia matinal com a sua sabedoria.
Eu, sabendo que a viagem nem era assim tão longa — e sentindo uma boa-disposição ausente há dois dias — alinhei.
Fomos na conversa.

De repente, a pergunta:
“Sabe quantas verdades há no mundo?”.

Não fazia ideia.

“Quatro!”, informou-me. “A sua, a minha e a do outro.”

Fez uma pausa, esperando que perguntasse pela quarta.

Deixei-me estar, saboreando a sua ansiedade crescente de conclusão.

Como nenhuma das partes cedia, perguntei finalmente:
“Então, e a quarta verdade?”.

“Calma”, respondeu. “A quarta é a Verdade.”

Fiquei calado. Pensei que até poderiam ser duas verdades e meia, se cada opinião valesse apenas metade, três e dois quartos ou até mesmo apenas uma.

“Eu tenho a minha opinião, você tem a sua, o outro tem a dele. Depois existe a Verdade.”

Simpática maneira de começar o dia, não é?

“É bem verdade.”

Fechei sonoramente a porta do carro.

Noite de frente, deferente, diferente

Sempre te senti a transbordar
de uma arte sensual que desconheces.

Coisas tão corriqueiras
que nunca percebeste:

a forma dos teus dedos a segurar a chávena de café.

A maneira ténue da tua língua
a bater nos dentes da frente —
esse doce falar enrolado.

O modo como pareces desenhar mentalmente
as coisas para as quais olhas.

As palavras que ponderadamente dizes.

E, enquanto reparava de forma subtil em ti,
deixei-me ir.

Acordei hoje às quatro e dez da manhã.

Disseram-me depois
que fora um terramoto.

Manual de Instruções

Devo-te isto, quanto muito: estás atrasada.

Se vieres ainda hoje, não batas com a porta,
como é de teu jeito.
Sei que não o fazes por mal.

Mesmo que não esteja ninguém em casa,
não batas com a porta:
eu iria sempre senti-lo.

A casa é minha
e os rumores dela habitam os meus medos,
as ansiedades de um ser limitado
pelo lado lírico da vida.

Ao entrares, faz como se estivesses em casa —
no fundo estás, se a casa sou eu.

Se me encontrares deitado,
deita-te a meu lado.
Sem cumprimentos,
sem aforismos,
sem palavras.

Antes, porém, certifica-me
de que não tens os pés gelados.

Entra com cuidado na minha cama:
estou quente e sou frágil.
Ou estarei frágil e sou quente?

Não te vou querer por me quereres.
Não é assim que as coisas funcionam.
Mas já foi.

Não te vou olhar de modo especial
por me olhares de modo especial.

Aprenderei a caminhar a teu lado
se chegar a caminhar a teu lado:
não para te acompanhar,
nem para te seguir,
mas para te apreciar.

Os passos são como tijolos
que se usam para construir algo.

Eu só estou aqui a ver as vistas.
Desassociei-me disso.

Não admito que construam por mim,
apenas comigo.

Só admito desconstruções.
A ver se olhas para mim.

Quando acordares, não voltes a adormecer.

Se adormeceres, não me chames:
saí para comprar café
para o teu pequeno-almoço.

Cruzamentos divergentes

Para sempre, para ti, significa nada para mim, pequeno fantasma.

A nossa dança não se resumia a um movimento de ancas, um twist.
Não.
Nesta dança já há muito mudámos de pares.

És fria — por isso, fantasma.
Não sabes para onde vais, e por isso fantasmas por aqui.

Não fantasmes mais.

As tuas palavras foram um desenho que esbocei.
O tempo passou desde que as proferiste,
quase formando um escudo,
quase como se não tivesses já boca.

Não recordo uma fotografia tua na minha memória.

As tuas palavras são como flocos de neve:
leve som etéreo que esvanece.

Para sempre só o será
porque és fantasma por exorcizar,
por expulsar como fim.

És um papel esquisito
sobre o qual escrevo duas ou três linhas
e depois desisto.

Um papel estranho
onde as palavras voam de um lado para o outro.

Escrevo-o a negro.
Como elas, não posso parar de correr.

Não páro de correr até descolar.
Vou daqui até à lua.

Uma cadeira confortável
é todo o quinhão que me calha da vida que interessa.
Só preciso de um dia para que o meu corpo se afeiçoe a ela,
para nela dançar, desenhar, fotografar,
sonhar os sonhos estranhos
que me fazem querer sonhar sem parar —
sem isso de acordares.

As tuas palavras nevam lá fora enquanto durmo.
Navegas.

Caem como se não houvesse amanhã,
como se o dia fosse sempre noite.

O dramatismo das tuas palavras deixa-me louco.